domingo, 1 de abril de 2012

A História Oficial de 1964


Olavo de Carvalho
O Globo, 19 de janeiro de 1999


Se houve na história da América Latina um episódio sui generis, foi a Revolução de Março (ou, se quiserem, o golpe de abril) de 1964. Numa década em que guerrilhas e atentados espoucavam por toda parte, seqüestros e bombas eram parte do cotidiano e a ascensão do comunismo parecia irresistível, o maior esquema revolucionário já montado pela esquerda neste continente foi desmantelado da noite para o dia e sem qualquer derramamento de sangue.

O fato é tanto mais inusitado quando se considera que os comunistas estavam fortemente encravados na administração federal, que o presidente da República apoiava ostensivamente a rebelião esquerdista no Exército e que em janeiro daquele ano Luís Carlos Prestes, após relatar à alta liderança soviética o estado de coisas no Brasil, voltara de Moscou com autorização para desencadear – por fim! – a guerra civil no campo. Mais ainda, a extrema direita civil, chefiada pelos governadores Adhemar de Barros, de São Paulo, e Carlos Lacerda, da Guanabara, tinha montado um imenso esquema paramilitar mais ou menos clandestino, que totalizava não menos de 30 mil homens armados de helicópteros, bazucas e metralhadoras e dispostos a opor à ousadia comunista uma reação violenta. Tudo estava, enfim, preparado para um formidável banho de sangue.

Na noite de 31 de março para 1o. de abril, uma mobilização militar meio improvisada bloqueou as ruas, pôs a liderança esquerdista para correr e instaurou um novo regime num país de dimensões continentais – sem que houvesse, na gigantesca operação, mais que duas vítimas: um estudante baleado na perna acidentalmente por um colega e o líder comunista Gregório Bezerra, severamente maltratado por um grupo de soldados no Recife. As lideranças esquerdistas, que até a véspera se gabavam de seu respaldo militar, fugiram em debandada para dentro das embaixadas, enquanto a extrema-direita civil, que acreditava ter chegado sua vez de mandar no país, foi cuidadosamente imobilizada pelo governo militar e acabou por desaparecer do cenário político.

Qualquer pessoa no pleno uso da razão percebe que houve aí um fenômeno estranhíssimo, que requer investigação. No entanto, a bibliografia sobre o período, sendo de natureza predominantemente revanchista e incriminatória, acaba por dissolver a originalidade do episódio numa sopa reducionista onde tudo se resume aos lugares-comuns da "violência" e da "repressão", incumbidos de caracterizar magicamente uma etapa da história onde o sangue e a maldade apareceram bem menos do que seria normal esperar naquelas circunstâncias.

Os trezentos esquerdistas mortos após o endurecimento repressivo com que os militares responderam à reação terrorista da esquerda, em 1968, representam uma taxa de violência bem modesta para um país que ultrapassava a centena de milhões de habitantes, principalmente quando comparada aos 17 mil dissidentes assassinados pelo regime cubano numa população quinze vezes menor. Com mais nitidez ainda, na nossa escala demográfica, os dois mil prisioneiros políticos que chegaram a habitar os nossos cárceres foram rigorosamente um nada, em comparação com os cem mil que abarrotavam as cadeias daquela ilhota do Caribe. E é ridículo supor que, na época, a alternativa ao golpe militar fosse a normalidade democrática. Essa alternativa simplesmente não existia: a revolução destinada a implantar aqui um regime de tipo fidelista com o apoio do governo soviético e da Conferência Tricontinental de Havana já ia bem adiantada. Longe de se caracterizar pela crueldade repressiva, a resposta militar brasileira, seja em comparação com os demais golpes de direita na América Latina seja com a repressão cubana, se destacou pela brandura de sua conduta e por sua habilidade de contornar com o mínimo de violência uma das situações mais explosivas já verificadas na história deste continente.

No entanto, a historiografia oficial – repetida ad nauseam pelos livros didáticos, pela TV e pelos jornais – consagrou uma visão invertida e caricatural dos acontecimentos, enfatizando até à demência os feitos singulares de violência e omitindo sistematicamente os números comparativos que mostrariam – sem abrandar, é claro, a sua feiúra moral – a sua perfeita inocuidade histórica.

Por uma coincidência das mais irônicas, foi a própria brandura do governo militar que permitiu a entronização da mentira esquerdista como história oficial. Inutilizada para qualquer ação armada, a esquerda se refugiou nas universidades, nos jornais e no movimento editorial, instalando aí sua principal trincheira. O governo, influenciado pela teoria golberiniana da "panela de pressão", que afirmava a necessidade de uma válvula de escape para o ressentimento esquerdista, jamais fez o mínimo esforço para desafiar a hegemonia da esquerda nos meios intelectuais, considerados militarmente inofensivos numa época em que o governo ainda não tomara conhecimento da estratégia gramsciana e não imaginava ações esquerdistas senão de natureza inssurrecional, leninista. Deixados à vontade no seu feudo intelectual, os derrotados de 1964 obtiveram assim uma vingança literária, monopolizando a indústria das interpretações do fato consumado. E, quando a ditadura se desfez por mero cansaço, a esquerda, intoxicada de Gramsci, já tinha tomado consciência das vantagens políticas da hegemonia cultural, e apegou-se com redobrada sanha ao seu monopólio do passado histórico. É por isso que a literatura sobre o regime militar, em vez de se tornar mais serena e objetiva com a passagem dos anos, tanto mais assume o tom de polêmica e denúncia quanto mais os fatos se tornam distantes e os personagens desaparecem nas brumas do tempo.

Mais irônico ainda é que o ódio não se atenue nem mesmo hoje em dia, quando a esquerda, levada pelas mudanças do cenário mundial, já vem se transformando rapidamente naquilo mesmo que os militares brasileiros desejavam que ela fosse: uma esquerda socialdemocrática parlamentar, à européia, desprovida de ambições revolucionárias de estilo cubano. O discurso da esquerda atual coincide, em gênero, número e grau, com o tipo de oposição que, na época, era não somente consentido como incentivado pelos militares, que viam na militância socialdemocrática uma alternativa saudável para a violência revolucionária.

Durante toda a história da esquerda mundial, os comunistas votaram a seus concorrentes, os socialdemocratas, um ódio muito mais profundo do que aos liberais e capitalistas. Mas o tempo deu ao "renegado Kautsky" a vitória sobre a truculência leninista. E, se os nossos militares tudo fizeram justamente para apressar essa vitória, por que continuar a considerá-los fantasmas de um passado tenebroso, em vez de reconhecer neles os precursores de um tempo que é melhor para todos, inclusive para as esquerdas?

Para completar, muita gente na própria esquerda já admitiu não apenas o caráter maligno e suicidário da reação guerrilheira, mas a contribuição positiva do regime militar à consolidação de uma economia voltada predominantemente para o mercado interno – uma condição básica da soberania nacional. Tendo em vista o preço modesto que esta nação pagou, em vidas humanas, para a eliminação daquele mal e a conquista deste bem, não estaria na hora de repensar a Revolução de 1964 e remover a pesada crosta de slogans pejorativos que ainda encobre a sua realidade histórica?

sábado, 25 de fevereiro de 2012

BOCEJO


Tanja Krämer

Estou com raiva de mim mesma. Quero dizer, do dáimon. Ele tem me perturbado: "Escreve sobre o carnaval! Escreve, escreve, escreve!" Não consigo nem dormir.

O que você quer saber, dáimon? Vou ser sincera. Não consigo entender essa festa. Pelo menos aqui no Rio. A única diferença do carnaval para o resto do ano é o aglomerado de pessoas. As pessoas se comportam o ano inteiro mais ou menos desse jeito.

Ok, vamos enfatizar o "mais". Veja o que ocorreu semana passada no meu trabalho. Fizeram uma eleição da melhor fantasia. (A minha era de mera funcionária.) Uma das garotas resolveu se fantasiar de periguete. Ao menos foi o que entendi da roupa. Ela estava com um vestido vermelho bem justo, do tipo que se peidar rasga tudo. E tinha uma área equivalente a um lencinho. A garota calçava um par de luvas longas, vermelhas. Estava de salto alto. A novata do RH tentou se assanhar também. Foi com um shortinho preto e saltinho. Na hora lembrei de quando fui a uma festa a fantasia como odalisca. Perto delas, eu teria parecido a Viúva Perpétua. Mas conta ao meu favor eu não ter me vestido assim em ambiente de trabalho. Calhou que quem venceu foi um cara vestido de mulher. Gostei de ver as duas sendo derrotadas. Nem foi só por despeito. Refletindo na hora, pensei na palhaçada de tudo aquilo. Não me refiro à palhaçada da fantasia. Digo do problema de se esparramar vaidade. Quando alguém se veste com um lencinho, quer passar a sensação de ser uma maravilha. "Olhem para mim, vejam com sou especial!" Deixar os carinhas embasbacados é uma forma de provocar admiração. Você se torna o centro das atenções. É a mais desejada. Influenciar tanto a todos faz com que você se sinta mais viva. No caso da (fantasiada de) periguete, o negócio foi tão brabo que até uma magrinha sapatona ficou toda ouriçada. Para mim, nada daquilo tinha graça, e não só porque não sou sapatona. Tanta vaidade me aborrece. Daí que por mais que eu considere normal a reação imbecilizada dos caras (e até da magrinha sapatona), no fundo não sei como ninguém boceja diante de coisas assim.

Sono é o que sucede à bronca quando penso no carnaval. Ele me enche o saco por todas as mais óbvias razões. (Nessa época, acho mais fácil amar a Deus com todas as minhas forças e com todo o meu entendimento do que amar ao próximo mijão bêbado desbocado como a mim mesma.) Agora, o exercício abnegado de vaidade atinge um nível tal que me dá sono. No passado, todo mundo sabia que era a festa do burro. Era a época invertida. As pessoas sabiam que durante um período o ridículo tomava conta. Terminando o período, tudo voltava ao normal. Hoje não é mais assim. As pessoas levam a sério a farsa. Algumas até choram orgulhosas após sambarem por mais de uma hora. A vontade de chorar pode ser é sincera, mas não o choro. É uma baita forçação! No fundo, qualquer um (ou pelo menos a maior parte das pessoas) sabe que se exibir com um tapa-sexo por cerca de uma hora não é lá motivo de orgulho, muito menos de profunda realização pessoal. Por mais que a gente viva numa era carnavalesca (a reviravolta dos valores nada mais é que um carnaval sem fim), existe ainda algum rastro de senso da medida. Existe ainda uma diferença entre sinceridade e afetação. Uma coisa é a manifestação de alegria, outra é querer aparecer. Às vezes manifestar alegria pode parecer ridículo, mas querer aparecer sempre o é. Mas querer ser admirado no instante em que se é ridículo é a apoteose da babaquice, e não por acaso o final do Sambódromo é chamado de Praça da Apoteose. Considerando as coisas assim, pelo menos em mim cessa a bronca e advém o bocejo. É babaquice demais.